quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Uma nova carta de Atenas

Excerto duma carta do P., um amigo italiano em Atenas.

Atenas, 2008.12.15

Olá pa,

Pus o cartão italiano no telemóvel e vi a tua mensagem. Não te preocupes: estou bem. A falta de notícias è devida à impossibilidade de encontrar o lugar e o tempo para escrever-te, mas como se preocupam para mim, eis as news:
[...]
A situação vai-se normalizando (logo te explico o que isso quer dizer). Já não há as grandes batalhas, as devastações e os saqueios dos primeiros dias. Começa-se a reconstruir. A cidade lembra-me um bosque dos nossos vales [do norte da Itália] antes da primavera, quando todas as árvores estão ainda completamente desfolhadas e só as cerejeiras já florescidas se distinguem, destacam-se por seus fatos brancos. Ora, Atenas é igual pelos prédios queimados. Não são muitos mas dão nas vistas; de vez em quando um aparece à esquina... uma loja de carros, om banco, um supermercado. Um meu amigo disse-me que acha graça perguntar-se quantos destes esqueletos não estivessem assim antes da revolta; até descobrir que nem anteriormente a situação era cor-de-rosa... E isto explica muitas coisas.

Os últimos choques espalhados aconteceram sábado na ocasião da primeira semana depois do assassinato. Uma manifestação logo atrás da outra, choques no bairro Gazi e na Exarchia com a utilização abundante de fogos artificiais pelos manifestantes, muitas concentrações pacíficas e manifestações espontâneas durante todo o dia e toda a noite.
Eu andei ao calhas como um pião até me juntar a uma marcha espontânea de pessoas que voltavam para o centro. É desaconselhável circular sozinho enquanto ocorrem acções... Não há do que ter medo mas a polícia segreda e os fascistas são uma realidade e podes vê-los divagarem à volta das marchas e das faculdades. A marcha em que estava invadiu a rua, mas, embora se mantivesse quase totalmente pacífica, foi parada pela polícia que cortou a passagem à frente e atrás. Consegui fugir com outro menino até o ASOE, um covil anárquico.

Lá soubemos que 37 pessoas foram bloqueadas pela manobra da polícia e presas. Os anárquicos decidiram então responder queimando um banco. Prontos e armados saíram do ASOE, mas voltaram logo depois quando um cocktail molotov entrou por engano numa casa. Quase acabaram por bater-se. Então fui para casa: do meu ponto de vista a coisa está a perder-se. Concretamente as manifestações estão nas mãos dos anárquicos do ASOE e do Politécnico, mas são acções escolhidas, assaltos a bombas de gasolina e rápidos raids incendiários contra bancos ou objectivos governamentais como ministérios ou esquadras da polícia. A resistência já não é difundida e de todas as maneiras segue pacífica, contudo as manifestações continuam sem parar.

Além da crónica.

A situação está "normalizada", como já te disse, numa completa anormalidade.O facto de não haver saqueios em todo lado não significa que tudo esteja como dantes. O clima que se respira, o ar é diferente. Vê-se em muitas pequenas coisas. Realmente pode-se ir trabalhar de manhã, mas os semáforos foram quase todos totalmente destruídos. Consegues imaginar uma metrópole do tamanho de Atenas, com 5 ou 6 milhões de habitantes, caótica e desordenada como Atenas sabe ser, sem código da estrada? Isto significa que deslocar-se do ponto A até o ponto B da cidade pode demorar um tempo indeterminado que pode mudar de várias horas segundo o dia ou o momento... E nem falo sequer das marchas contínuas.

Ninguém atreve-se a intervir em nada. Adolescentes que devastam cabines telefónicas ou queimam multi-bancos... e ninguém diz nada... nem sequer a polícia.Os polícias andam só em grupos, todos juntos, mas nunca intervêm. Têm medo, só esperam para o turno acabar e as pessoas sabem, todos sentem-no. Cada um faz o que quer, desde atravessar onde é proibido até atirar-lhes lixo em cima.
Só para te dar um exemplo. Ontem pelo centro passou um Porsche. Um homem que estava a atravessar (um homem normal - nos 40 - de fato e com mala) parou, recolheu uma pedra e ...atirou-lha!
Nada de transcendente, percebes? Mas a gente está a acostumar-se ao absurdo.

O ASOE, quase todos os dias, faz irrupção num supermercado e leva tudo para abastecer a cantina auto-gerida e gratuita... Isto poderia continuar durante muito tempo.

O custo da vida é altíssimo, os ordenados dos mais baixos na Europa. Já ninguém acredita no conto para crianças da democracia.

Costuma-se considerar a Grécia como algo "fora" da Europa, como choques no Líbano ou sei lá... Pode-se pensar o que se quiser, mas a Grécia está na Europa. Eu vivo aqui, fogo! Talvez seja um nervo destapado, mas faz parte do nosso sistema democrático. O que está a acontecer aqui leva a reflexões que deveriam envolver-nos a todos sobre o nosso sistema de governo a colapsar, até os EUA sentiram a necessidade estética de limpar-se a cara através da eleição do Obama.
A separação entre estado e cidadãos aqui é concreta.. podemos respirá-la no ar. A hostilidade das pessoas contra os polícias (deveriam ser os nossos anjos de guarda, mas aqui obviamente ninguém acredita)... O que se diz na Itália - os polícias são servos dos servos, o poder replica-se a si mesmo, o objectivo da política é o obter votos, etc. - aqui vê-se em concreto, devido a problemas estruturais gravíssimos que primeiramente a Grécia já não consegue esconder.
O mesmo que, de maneira mais subtil, se perpetua em cada país ocidental; e deveria fazer reflectir que o incêndio esperava, há anos, por baixo das cinzas assim como em cada subúrbio da Europa. Mas a centelha explodiu de repente, em poucas horas e sem nenhum aviso prévio.

Como se acostuma dizer... O rei está nu...

E agora?

Nenhum comentário:

Postar um comentário